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Whole New World/Pretend World: artes pandêmicas

Whole New World/Pretend World: artes pandêmicas

Desde seu início em 2020, a pandemia trouxe uma forte ânsia generalizada nas pessoas em encontrar pontos de encontro entre o atual momento e obras artísticas. Comparações óbvias como o filme-burocracia do Contágio, de Steven Sodenbergh, e filmes-desastres como Epidemia, de Wolfgang Petersen, ambos sobre epidemias. Há também os casos de obras recentes que usam da quarentena enquanto procedimento, trabalhando de maneira mínima como forma de agilizar o processo de realização, como Malcolm & Marie, de Sam Levison, ou também em repensar a decupagem do filme que teve a realização atrasada pela pandemia, como afirmou M. Night Shyamalan sobre Tempo – com temas sobre a passagem dos anos, e uso do espaço limitado, reflete, também, o momento. Ou ainda, claro, obras que passaram a surgir abordando diretamente a pandemia e a quarentena – um prognóstico assustador pela baixa qualidade de um sem fim de piadas sobre distanciamento, uso de máscaras e chamadas de vídeo.

Porém, o exercício mais interessante são alguns encontros aleatórios com obras anteriores a 2020, mas que ainda parecem dialogar, prever, espelhar o sentimento do que de fato ocorreu entre 2020 e 2022 - e continuará a ocorrer até o fim dos tempos. Filmes de solidão, distâncias (ou proximidades), esparsos, perdidos dentro de si, onde talvez exista um centro de gravidade, mas escondido em camadas e camadas de falhas de comunicação e abstrações: encontros que te fazem perguntar o que de fato foi a pandemia e o que de fato expressa tais filmes. Muitos ainda serão achados, comentados e os mais óbvios ainda viverão à sombra da pandemia - tal qual a banda Wilco que lançou seu álbum Yankee Hotel Froxtot em convulsão com o 11 de Setembro, Contágio é um filme que viverá para sempre com as comparações com a COVID-19, por exemplo. Mas, em minha experiência, dois filmes saltam aos olhos mais do que qualquer outro até então: The Midnight After, de Fruit Chan, e As the Gods Will, de Takashi Miike, ambos de 2014 e ambos de origem asiática, o primeiro de Hong Kong e o segundo japonês.

O filme de Fruit Chan parece o da comparação mais óbvia, sendo um filme chinês sobre passageiros de um micro-ônibus que, ao atravessar um túnel, se deparam com o desaparecimento de toda a população da cidade. As imagens de drones que inundaram os jornais mundiais de ruas esvaziadas e desertas com a pandemia, mas aqui em 2014, com tomadas incríveis de Hong Kong esvaziada, das grandes ruas e avenidas aos prédios e o comércio. O grupo diverso de passageiros, entre universitários, jovens, velhos, rockeiros e pervertidos, se reúne na tentativa de entender e desvendar não apenas o mistério dos desaparecimentos, mas todos os mistérios adjacentes: frequências de rádio desconhecidas, um homem de máscara radioativa, passados desconhecidos, a existência espaço-temporal, a decisão coletiva em sociedade relativa a justiça e o ataque por tanques que tentam destruí-los. 

Já o filme de Miike, japonês, apresenta uma espécie de competição entre estudantes secundaristas que disputam jogos sádicos, e mortais, dentro de um cubo branco gigante que aparece sobre grandes metrópoles mundiais. Se as ruas esvaziadas de Midnight After colocam uma hipótese clara de apocalipse, As the Gods Will tangencia o conceito pelo descontrole generalizado, pervertido, de Miike - da explosão de cabeças que se transformam em bolinhas de gude vermelhas da cena inicial, inesperada e explosiva, ao espetáculo midiático em volta do cubo gigante. Mas o empréstimo dessas ansiedades circa 2014 para tentar expressar 2020 não surgem necessariamente do apocalipse - quem sabe da visão de um apocalipse, de um vislumbre de fim do mundo, mas ainda incompreensível. É muito mais do ato de se olhar, frontalmente, a incerteza humana, nossas fraquezas, traumas e ficções.

Midnight After, por exemplo, é uma adaptação de uma web-novel postada em um fórum online pelo usuário Mr. Pizza. Mas, mais importante, repercute todo o universo da década de 10 àquela altura: o espaço físico da ilha de Hong Kong, a relação do país com o Japão, com a China continental, o impacto do desastre de Fukushima, dilemas morais/jurídicos, a relação com a tecnologia e com o ocidente. Ainda mais importante: a relação com o próximo, e com um futuro desconhecido junto a ele. Há um deslocamento de cada personagem com o mundo a sua volta que só vem à tona quando esse mundo desaparece e as relações precisam ser criadas do zero.

As the God Will apresenta dois fatores: o cubo branco (sugerido dentro do filme como invasão alienígena), e símbolo culturais japoneses (como bonecos Daruma e gatos Maneki, de CGI) que eram os "vilões" de cada jogo que os estudantes participavam. Há também, claro, em cada desafio letal juvenil, um flerte com o procedimento daqueles clássicos da prateleira de locadora baseados em enclausurar-um-bando-de-gente-pra-fazer-um-Experimento-Sociológico (e que aparentemente está bem vivo na prateleira dos streamings com o The Platform, da Netflix), mas Miike não tem interesse no sociológico, no conto moralizante sobre as dificuldades de se montar uma sociedade. Se há alguns desafios com a ideia de "um de nós terá que morrer", nossos heróis, frescos de seus estereótipos de anime, só parecem flutuar entre a indecisão e a psicopatia, isso quando o filme, sádico, não os pune em primeiro lugar, sem espaço para os debates.

O enclausuramento dos personagens, as mortes aceleradas e o princípio de um fim do mundo são menores, porém, em comparação com o choque entre a encenação gráfica e plástica de Miike, festiva e cômica, e o desespero palatável de cada jovem que simplesmente não entende o que está acontecendo. O próprio protagonista do filme não surge como o herói, está muito mais para um adolescente que pensa em soluções rápidas, mesmo que bobas. Há um contraste, absurdista, então, entre o acontecimento - assassinato em massa de adolescentes por motivos completamente desconhecidos, em alguns casos ocorridos em ambientes corriqueiros como uma sala de aula e um ginásio - e o andamento do filme, com todo o resto do universo que comemora e celebra com os jogos. Há ainda os partidários que essa presença alienígena surge para a formação de um “novo mundo”, no qual os vencedores da competição seriam os novos deuses.

Inclinações fascistas de lado, ao seu início, o filme flutua entre flashbacks e a competição, procedimento comum para explicar as relações entre os personagens do filme dentro do plot principal. Após o fim dos flashbacks, o filme passa a flutuar no espaço que se dedica a mostrar - de dentro do cubo branco, onde o espaço está em constante mudança, sendo abstrato, incompreensível e plástico, para fora dele, para o resto de Tokyo, dos otakus presos no quarto ao frenesi social gerado pelo cubo. De qualquer forma, o filme completamente suspende a realidade, o dia a dia "comum" dos flashbacks. Nem tempo, nem espaço fazem sentido - e nem o que está de fato na frente dos personagens, seja o cubo gigante ou um Urso Polar 2D que quer saber qual a comida favorita de cada participante e matar quem está mentindo, fazem algum sentido além de uma abstração, de alguma leitura, possivelmente alienígena, desconhecida, do que é estar vivo na atualidade, do que é se relacionar com a cultura, e com o próximo, neste momento histórico. A presença desses ícones culturais japoneses parece sugerir essa ideia, o clichê do filme de invasão, de aliens usarem símbolos familiares para apaziguar os ânimos humanos, mas nenhum ânimo é apaziguado, o ar de familiaridade é apenas mais um elemento engolido pela incerteza e pela grande dúvida: o que diabos está acontecendo.

Que é o mesmo procedimento de Midnight After, em que a única constante, o único centro possível para o filme é a grande dúvida, a suspensão de todo o universo em prol de uma única pergunta: "quê?" E, nada mais justo, que ambos os filmes terminem não-resolvidos. Midnight After termina com os personagens que restaram conseguindo fugir dos tanques e indo tentar encontrar respostas no centro de HK, enquanto As the Gods Will termina com os dois "vencedores" da competição, em cima do cubo gigante encontrando o último grande símbolo, Kami (Deus - que no caso é um mendigo), deixando no ar uma continuação ainda não realizada. Nenhum filme sobre a década de 10 poderia fugir justamente disso, da incapacidade de poder, ou sequer cogitar, uma resposta, uma conclusão e uma explicação.

O que restou foram os traumas, sejam seculares, históricos e culturais, ou presentes e atuais, recém-adquiridos, e as possibilidades, de um novo mundo, ou de um retorno do mundo "normal", mas tudo ainda abstraído e inconclusivo: a realidade que dobrou-se sobre si mesma até um ponto final que ninguém é capaz de discernir qual o significado. Por fim, vale pensar sobre uma terceira via: a faixa de fechamento do único álbum de SOPHIE, Oil Of Every Pearl's Un-Insides, de 2018, Whole New World/Pretend World. A música apresenta essa espécie de utopia de um mundo sem contenções, livre para todos os universos de sentimentos e sentidos. Vindo no álbum após Immaterial, um hino queer e, novamente, sobre liberdades, românticas e sexuais, além de qualquer gênero, a música inicia com seu título repetido em cima de uma instrumentação dançante, mesmo que opressiva, unindo o interesse em melodias pop, mas ricas em experimentos com texturas e batidas. Porém, a passagem para o que pode ser chamado da seção de Pretend World, é justamente em direção a uma abstração, de da batida que compõe a fatia pop da faixa que evolui até o vocal se tornar inteligível e, por fim, evocar uma espécie de drones, sons longos e estendidos, que engolem toda a faixa, toda aquela existência de um novo mundo, em um vácuo cósmico desconhecido. O falecimento de SOPHIE no início de 2021 e o fato de seu único álbum ter se tornado, não intencionalmente, em sua obra definitiva, apenas fortalece a impressão de um mundo que pode ter sido de possibilidades, um século XXI de infinitas aberturas e liberdades, mas impossibilitado de ir em frente, interrompido e inconclusivo, auto sabotado e ainda sim mergulhado no desconhecimento e na incerteza.